sexta-feira, junho 16, 2006

(seria tolo pôr um título neste daqui)

Planavam no ar, como como se alguém houvesse aberto uma pasta de papéis da janela do décimo andar. Planavam no ar, preguiçosas, e cortavam de leve minha pele, antes de tocar no chão. Aquelas angústias. Ela escutou meus passos e emergiu de um arbusto de azaléias. Lábios pintados de um tom forte, cor de uva, e os joelhos sujos de terra como quem, preparada para sair, sentira uma necessidade determinante de arrancar as ervas daninhas. Uma combinação inusitada. Sempre fôra.Toda ela, uma combinação inusitada.Bikini com capa de chuva, feijão com amendoim. Meio boa, meio ruim.
Ela enxugou o suor da testa e, entrando em casa, disse "vem". Saindo do ar iluminado, a casa parecia toda preta."Água?" " Por favor". Os móveis pesados e marrons entraram em foco e eu bufei de calor, arregaçando as mangas da camisa. Lá vinha ela, um guarda-chuvinha dançando tolamente no copo d´água. Agradeci.
O mundo de Loretta é regido pelas leis mais improváveis. Ela só pode cantar quando dorme e só pode dormir quando deita e só deita quando se entristece. Ela sempre canta chorando. Ela sempre chora cantando, e nem o sabe, e nem o sabe... o mundo de Loretta é regido pelas leis mais cruéis. Ela só pode amar homens chamados Raul. Disso ela sabe. Ela só consegue amar Rauls, e eu tinha que me chamar Aurélio.
Loretta, Loretta. " Te trouxe um presente", e dei a ela uma caixinha de doce de abacaxi. Cheia de amargura, mas ela não percebeu. Era uma despedida, e ela não percebeu. Eu agonizava ali, e ela... ela comeu um dos docinhos, o açúcar de confeiteiro aderindo ao batom. Comeu tão sincera que eu até parei de doer um pouquinho. " está gostoso?" Ela respondeu com uma risadinha que levantou uma nuvem de açúcar. Acho que foi um sim.
O silêncio depois foi constrangedor e endurecido. Disse alguma coisa a respeito das tulipas no jardim. Estão bonitas. O guarda-chuvinha abria e fechava de verdade, eu o rolava entre os dedos. Levantei os olhos e me queimei nos dela, do outro lado da mesa, tão fixos em mim, meu coração até se atrapalhando na ordem das batidas. Mas acontece que não. Acontece que eu me chamo Aurélio.
" o quê foi?"ela. " nada, só estava pensando umas coisas" eu. "ah." E eu estava mesmo. Em como tudo é absurdo. Sabe. O problema não é a gente se quebrar. O problema não é a gente ter que se montar de volta. O problema é o quanto a gente se corta com os próprios cacos. Ela veio e passou os dedos no meu cabelo. Só que eu me chamo Aurélio. Por isso eu agradeci por tudo e disse tchau.
Só que não cheguei a levantar por quê ela sentou no meu colo, lambeu o dedo indicador e o encostou na minha testa. " Pronto. Agora teu nome é Raul".