domingo, maio 28, 2006

cotidiano medley

Era essa a ordem das coisas: primeiro, o chão. Sobre o chão, a poltrona, Sobre a poltrona, eu, Sobre mim, o cão, Sobre o cão, a coberta, Sobre a coberta, o livro, Sobre o livro, minhas mãos. Minhas mãos geladas que preferiam estar, como o cão, entre eu e a coberta, mas dedicavam-se à tarefa ingrata de segurar o tomo e virar as páginas e ranger mal-humoradamente em protesto ao frio. Mãos indolentes e de unhas sujas. Mãos minhas. E o livro morria página após página (eles morrem quando levamos a vida que há neles pra dentro de nós) como se as mãos não estivessem nele, e ele não estivesse sobre as cobertas, como se as cobertas não cobrissem o cão, e o cão não dormisse em meu colo e eu não me sentasse na poltrona, e a poltrona definitivamente não estivesse no chão.

(Do outro lado da cidade, eu gostaria de dizer, mas não direi, afinal é tão perto) Não muito longe, ali na cidade, mamãe punha um recém nascido nu na balança. O recém nascido não gostou muito e, pra ser bem franca, acho que a balança também não. Na sala de espera, um homem com sério caso de hemorróidas sentava-se meio de lado, lendo uma revista Seleções de 1997, ouvia os urros infantis balançando o pé ritmicamente e pensava consigo mesmo que pra uma música da britney spears até que não estava tão ruim. Mamãe e pediatra faziam backing vocal dizendo "bebê bonzinho, bebê bonzinho, tchutchutchu" naquela voz que é reservada para crianças pequenas, bichos de estimação, deficientes mentais e, sim, alguns tipos de namorados.

Agora sim do outro lado da cidade, maninho aprende os segredos da vida e da morte. Mãos enluvadas, bisturi na mão. Na mesa cirúrgica, um cachorro que não tem colo, nem coberta, nem dono, mas tem umas vísceras deveras interessantes se você estiver interessado em passar no teste prático de anatomia. Sabe quando eles dizem "sacrificar"? é isso. O cachorro mártir e o futuro da medicina. Mas não se preocupem com totó. Vi num desenho que todos os cachorros vão pro céu.

De volta ao lugar não tão longe da cidade, nosso amigo das hemorróidas entra na salinha do doutor. À sua espera, não está só a mesa que parece obstétrica (mas que sugere joelhos no sentido inverso), mas também um homem de 1,90m e mãos perturbadoramente grandes. Ele sorri. Pensando bem, essa consulta é algo que você talvez prefira não imaginar.

Horas se passaram, mas o chão ainda não está lá.Só mais um pouco antes que tudo volte, tão sem nada pra preencher esse tudo. Eu nunca dou atenção às queixas das falanges, falanginhas e falangetas dramáticas. Porque eu sempre tive mãos frias e dedos de gelo perpétuo como se eles fossem o cume da montanha que não sou. E elas só se aquecem na eventualidade improvável de exercícios encasacados, ou na mais provável de vinho, cerveja, absinto ou vodka, mas daí é escarlate por toda a parte, incluindo pés e mãos e rosto e a pele detrás das pálpebras que queima e quase incomoda. Mas no momento são só as unhas róseo-arroxeadas e minhas mãos inúteis de quem não faz nada.
E meu far niente, cada vez menos dolce.