Contos da carrocinha: Anaximandro, o Falastrão Parte 3: O caldo nobre da galinha azul.
*Antes de começar o fim do conto, algumas notas: obrigado a todos que me ajudaram na escolha de poemas! Quem ainda quiser ajudar, ainda recebo sugestões até dia 30 de agosto. Ah, e pra quem não leu as 2 primeiras partes do anaximandro (e tiver paciência, pq esse sozinho já graaande) aqui tem o link: "essa é a irreal" e "just do it". é isso. abraços!*
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Previdente, surrupiou as roupas de um criado numa mansão na qual pernoitou sob o nome de Duque de Coke. Com esta roupa viajava, fingindo-se de cocheiro, tendo por trás de si a carruagem com fechadas cortinas, como se ocupada por seu rico proprietário. Era também com estas vestimentas que jogava, roubava e bebia nas estalagens, como no dia que ouviu pela primeira vez a respeito do que havia no reino ao lado.
Corria a notícia de que o rei daria, na próxima semana, um banquete com diversos nobres, que iniciaria a disputa pela mão da princesa. Sabendo disso, dispôs de parte de suas economias para hospedar-se na mais cara pensão da cidade mais próxima da fronteira, onde dormiam os candidatos à mão da princesa, ainda em viagem. No livro de hóspedes, procurou o fidalgo mais pobre e desconhecido. Quitério das Rosas Leite Mello Silva da Costa Andrade Moreira Pereira Macieira Bananeira Esteira Chaves Dutra Telles Junior. O marquês de Epson.
Anaximandro anotou o nome e o título, e durante a noite esgueirou-se de seu quarto e arrombou o quarto do marquês. Quitério dormia feito o Junior que era, e nem notou quando deixou de ser um homem de sangue azul e ceroulas vermelhas e passou a ser um pavão multicor. Numa algibeira, Anaximandro foi atirando os documentos, o dinheiro, as roupas, o anel com o brasão da família Pereira Macieira Bananeira Esteira Chaves (etc) e o convite para o banquete. Amarrou bem a algibeira, pôs o pavão debaixo do braço, pagou as contas da estalagem e arrepiou carreira antes que alguém se desse conta de qualquer coisa.
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- Quem vem lá? Quo vadis?
- Aqui apresenta-se para o banquete do rei, o meu senhor, Quitério das Rosas Leite Mello Silva da Costa Andrade Moreira Pereira Macieira Bananeira Esteira Chaves Dutra Telles Junior, O marquês de Epson. – replicou Anaximandro em suas roupas de fiel lacaio.
- Mostre o convite.
- Cá está.
Anaximandro estacionou a carruagem, guardou os cavalos na estrebaria e dirigiu-se ao quarto que lhe estava reservado.
- Lacaio!
- Sim?
- O que está fazendo? Os quartos dos empregados são na ala sudoeste.
- Eu sei, senhor – fingiu ares de humildade - mas é que meu Senhor, o marquês, quer se livrar de suas roupas de viagem e exige seu pavão de estimação.
- Muito bem. Mas não fique perambulando pelos corredores.
- Sim senhor.
Limpo e trocado, transformou-se novamente em um elegante mancebo, e foi prestar suas homenagens ao rei e à princesa.
- Meu mui estimado monarca, venho oferecer-lhe meus préstimos, a ti e a tua lindíssima filha. Mal posso expressar a comoção que me provoca simplesmente estar em tua veneranda presença. Como prova da minha sinceridade de propósitos vos trago esta ave de rara beleza, mas que no entanto nada é em comparação à radiância desta jovem.
Aqueles de vocês que estiverem familiarizados com os contos de fada devem imaginar que toda princesa é possuidora de beleza estonteante. Mas a verdade é que, tendo por dote um reino inteiro, para não falar de castelo, contatos e fortuna, até um graveto fica uma tetéia. E depois, sempre existe o creme nívea, o silicone, ou em último caso, os alfinetes de furar os olhos. A princesa Germânia, por sorte, não caia nesta última categoria. Uma simples burka resolveria o problema.
O banquete durou dois dias e duas noites. Os concorrentes pela mão da princesa eram, em sua maioria, quarentões já calvos ou rapazes pálidos, magrelos e, francamente, meio bobos. Anaximandro já podia sentir uma preferência da real menina por ele, e aproveita tranqüilamente os luxos do castelo até que, após a segunda ceia, um lacaio dirigiu-se a ele:
- Saia, lacaio, ou me atrasarei para a caçada.
- Anaximandro! Anaximandro!!
O rapaz, aturdido, olhou finalmente para o criado.Era loiro e bondoso. Era Matatias, seu irmão.
- Matatias! Que fazes aqui?
- Eu parti, pouco depois de você. Você sabe, buscar meu destino, essas coisas, todo mundo faz. Foi logo que mamãe morreu, eu não tinha como pagar o aluguel então fugi, mas com a sorte de minha boa estrela cheguei a este reino e consegui esse emprego no castelo. Oh, Anaximandro! Anaximandro, meu irmão! Você é um nobre agora! Sempre soube que podia esperar grandes coisas de você! – e o abraçou.
Anaximandro inventou uma estória bonita e tola sobre como conseguira o título, do tipo que Matatias gostaria, deu-lhe uma desculpa a respeito de seu novo nome e chamou-o para morar em Epson. Logo que pôde, desvencilhou-se do lacaio e juntou-se aos outros caçadores.
Enfim chegou o banquete final. Havia uma condição para ganhar a mão da princesa. Era preciso exterminar uma certa besta que atemorizava aquele reino. O falso marquês sorriu, acariciando mentalmente seu cajado. Todos partiram imediatamente. Anaximandro, que não tinha o cérebro prejudicado por gerações e mais gerações de cruzamentos inter-familiares, pegou antes emprestados uma armadura e capacete, levou mantimentos e equipamentos e nomeou Matatias seu escudeiro.
Finalmente partiram. Montaram acampamento não muito longe da entrada da caverna, escondidos entre as moitas, a alguma distância dos cadáveres. Matatias olhava perplexo. “ Mano. Como vai pegar a besta parado, olhando?” “ Exato. Não deve ser uma besta qualquer. Senão alguém já tinha matado. É melhor ficar de olho e ver qual o truque do monstro.”
Logo chegaram os primeiros corajosos, ergueram a espada e entraram na caverna à toda carga (ah, gerações e gerações de casamento entre primos!) saindo segundos depois, mas não com os próprios pés. Mortos. Nem sinal do monstro. Quando os seguintes vieram, os irmãos arrastaram-se para a boca da caverna. A besta era grande e amarela, com um imenso olho fechado na barriga. Os guerreiros golpearam o peito da besta e imediatamente caíram mortos. De fato, segundo o censo lendário, a maior causa mortis entre os membros da nobreza são as bestas seguidas de perto pelos duelos, e pelos envenenamentos arquitetados por grão-vizires.
Assistiu a cena mais duas ou três vezes, até que se convenceu que nada de diferente aconteceria. Aparentemente, algum encanto protegia a besta de qualquer um que a atacasse. Mas como matá-la sem tocar nela? Fazê-la se matar? Infelizmente ele não tinha trazido nenhuma foto da princesa. Não adiantava transformá-la em outra coisa com o cajado: precisava da cabeça para provar a conquista.
- Matatias. Vamos entrar. Lembre-se de não bater no monstro. Não faça nada.
Entraram.
- Olá besta, como vai?- a besta olhou.- Não seja mal- educada, bestinha. Responda. Ou você não fala?
- Falo. O que você quer? Tente me matar e acabe logo com isso.
- Não vou tentar. Vi o que aconteceu com os outros cavaleiros. Não vou encostar em você.
- Então o que você quer?
- Bater um papinho. Sei lá. Porque você não abre o olho?
- Não enche.
- Não pode? Vai ver se você abre o olho, morre, né?
O monstro abriu o olho, “satisfeito?”, dentro do olho tinha uma inscrição, mas a pálpebra baixou rapidamente. Claramente tinha a ver com o encantamento. Talvez fosse a chave.
Era preciso que o olho se abrisse de novo.
- Sabe, ferinha, eu faço ótimas mágicas. Não quer ver?
- Na verdade não. Estou com sono e você está me perturbando.
- Ok. Vamos, Matatias.
- Espera, maninho. Sra. Besta... será que você.... não poderia... por favor....
E a besta caiu no chão, lívida. Disse “aaargh”, resfolegou e morreu. Aturdido, Anaximandro cutucou a besta com o cajado. Mortinha. Levantou a pálpebra do bicho. Em seu olho estava escrito: “ Be good.” Bom, isso explica. Matatias exultava: “ Mano, você vai ser rei! Rei! Quanta felicidade!” Desfizeram o acampamento e partiram com a cabeça monstruosa. A meio caminho, mostrou pro irmão uns patinhos no lago e enquanto ele jogava pão, degolou-o e jogou-o n´água. Agora, nada poderia atrapalhá-lo.
Foi recebido com honras e teve um pomposo casamento com a princesa Germânia, ou, como ele carinhosamente a apelidaria mais tarde, Bagulhão. Dois meses depois, envenenou o rei. Tinha pressa. Foi coroado numa belíssima cerimônia. Do Bagulhão ele se livrou logo que o primeiro filho desmamou. Desposou uma cortesã, em seu lugar. Anaximandro vivia satisfeito, entre luxos e festas. Tentou seu cajado em todos os magos do reino, até encher o frigobar com latinhas de coca-cola.
Cobrava altos impostos e era conhecido como o maior tirano que aquela terra já teve. E quem não gostasse tinha o direito de permanecer em silêncio. Ou na masmorra. E assim, Anaximandro foi feliz para sempre. Mas só ele.
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