quarta-feira, agosto 02, 2006

Pra quem tiver paciência

- vai ficar tudo bem.

Claro. Não tenho a menor dúvida que vai ficar tudo bem, ela não tinha que me dizer. Porque todas as coisas passam, e nesse rodízio eventualmente terá de vir alguma coisa boa. Porque é assim. Porque que se eu me perguntar qual a pior coisa que pode acontecer eu diria “a morte”, e se eu morrer a vida continua, e como dizer então que não ficou tudo bem? Ou, por exemplo, se acabar o mundo, ainda tem um universo gigantesco vibrando de possibilidades que prosseguem e se renovam, é óbvio que estará tudo bem. Tudo sempre fica bem. E é por isso que não me serve de consolo algum.

- vai ficar tudo bem, ela repetiu, acenando com a cabeça.

- é. Vai sim.

E fiz um esforço para sorrir, afinal ela estava tentando me confortar.Um gole de café. Preto. Ela levantou a mão e tentou pôr no meu ombro, mas, por sorte, a distância que a mesa nos impingia era maior que o comprimento do braço. Eu gosto de pensar que sou uma pessoa dura como aço. Ou pelo menos dura como um osso de galinha. Eu gostaria de pensar que não mereço esse tipo de olhar que ela me dá. Cheio de compaixão. Pena. Eu preferia que ela não tentasse me confortar, não a mim. São poucas as oportunidades que a gente tem de se ver nos olhos dos outros. Os olhos dela só querem me mostrar fraqueza. Olha como você devia estar abalada. Olha como você devia estar triste. Olha como você é digna de pena. Eu estou bem, perfeitamente bem. O meu lábio inferior só está tremendo de indignação por você me achar tão frágil assim. Deixei umas moedas sobre a mesa, pra pagar o café, dei uma desculpa qualquer e iniciei minha rota de fuga, antes que ela tentasse me abraçar ou pior, me levar para assistir uma comédia romântica.

- Tchau, Leda. A gente se vê por aí.

- ... Tchau...

Me atirei pra fora do café, e me entranhei a pé pelas calçadas, está um dia bonito, com céu azul e umas nuvens bem altas. Tirei um cigarro da bolsa. Um Pall Mall. Comprei por causa do nome, que é engraçado. Um trocadilho esperando pra ser feito. Dizem que cada marca de cigarro põe um aditivo diferente pra você se acostumar e fumar só aquela marca. Como eu fumo muito pouco, posso variar e escolher segundo caprichos bobocas.

O dia está realmente muito bonito, só não tenho nada pra fazer com meu tempo e caminhar não está nada mau. Queria me perder. Um pouco. Fazer como as pessoas que se perdem em labirintos e virar à direita, sempre à direita. Se bem que na cidade eu acabaria dando voltas ao redor do mesmo quarteirão. Nesse caso, uma à direita, uma à esquerda, reto, reto, esquerda, direita, esquerda, reto, reto.

Bom não ir pra lugar nenhum. Andar sem ter que saber que no fim do caminho estará alguém e este alguém estará esperando por alguma explicação, ou pelo menos um cumprimento. Pra que existe cumprimento, mesmo? Não quer dizer nada, a pessoa viu que você está lá, você idem, mas pular o cumprimento é visto como falta de educação. É um reconhecimento, acho. Eu quero que você saiba que eu sei que você está aqui. Algo assim. Mas tem dias que nem isso. Tem dias que o querer ordena a boca fechada até que a próxima palavra pronunciada faça voar areia e hieróglifos. Hoje é um desses dias, e a perspectiva de ninguém por algum tempo é animadora.

Direita, esquerda, reto, reto, esquerda, direita, esquerda, reto, reto. Uma pracinha. Gracinha de pracinha. Ótimo, já estou fazendo riminhas. Que lindo dia. A praça é minúscula, com árvores compridas, flores e agora eu, sentada num banco de concreto com anúncio de ótica. Puxo da bolsa o Pall Mall. Há algumas semanas, eu me perguntava quando exatamente eu tinha virado uma comedora de caramelos. Comprava caramelos e sentava para ler no degrau da padaria, se estivesse sol. Quando foi que eu virei uma comedora de caramelos? Agora, nada de caramelos. Cigarros. Então grave esse momento na memória, menina, só no caso de um dia você se perguntar “quando foi que virei uma fumante?”. Agora. Já é o terceiro, contando com o que tomei no café. Se eu virar fumante, a culpa é de hoje.

Cigarro aceso, maço na mão, silêncio e nada pra fazer. Dá até pra sentir meu eu-analítico aflorando. Se a gente tem eu-lírico, por que não eu-analítico? O mais certo era ter um eu pra cada coisa. Eu-matemático, eu-prático, eu-lavador-de-louça. Na frente do maço, um brasão medieval, de cores brilhantes. Contraditório, no mínimo. Cale-se, eu-analítico. Não calo. Nesse caso, prossiga. No brasão duas frases em latim, tudo bem, combina com o brasão. Frase um: per aspera, ad astra. Por um acaso, a mesma frase do logotipo do colégio onde mamãe ensina. Cigarro e crianças. Diz algo a respeito de alcançar as estrelas por caminhos ásperos, ou seja, difíceis. Entendo a aplicação da frase para crianças, mas não para o tabaco. Frase dois: in hoc signo vincis. “Com este símbolo vencerás”, palavras do imperador romano que tornou o cristianismo a religião oficial de Roma. Nada a ver com fumo também. Ótimo. Agora temos cigarro e crianças e cigarro e cristianismo.

Ocasião perfeita para o eu-com-mania-de-perseguição bolar uma teoria da conspiração. Algo como “um cigarro com o suspeitíssimo nome de Pall Mall esconde terríveis mensagens subliminares dizendo ser bom ao se associar a crianças e a igreja católica apostólica romana”. Seria quase o Código da Vinci, se a Mona Lisa fosse um pacote de cigarros. Mas meu eu-com-mania-de-perseguição é subdesenvolvido, não consigo nem acreditar que as cenas do homem pisando na lua foram feitas em estúdio. Ou seja, eles tinham 2 lugares no brasão pra preencher e usaram as primeiras coisas em latim que acharam, e ainda acharam que ficou chiquérrimo. Afinal, quem sabe latim hoje em dia?

Para coroar, o slogan,: “wherever particular people congregate”. Hilário. Posso até ser “peculiar”. Mas juro que não estou congregando. Ou estou? Se fosse um daqueles filmes de suspense psicológico, na verdade eu seria a Ana e a Leda é só outra personalidade de uma pessoa surtada, que no momento está congregando. Tipo aqueles filmes, em que no final todo mundo é todo mundo, e que o roteiro é feito só pra culminar numa cena final com música alta daquelas que só faltava pular o roteirista gritando: “ahááá! Por essa vocês não esperavam !!”. Mas não vejo nenhum roteirista saltando, então acho que posso concluir que não estou congregando. Análise concluída. Resultado? Da próxima vez eu compro Carlton.

Caiu cinza na minha roupa. Quem manda ficar pensando besteira e não bater a cinza? Apago o cigarro. Algo de bom, pelo menos num dia como esse, em segurar um tubinho com fogo na ponta. Finge uma ocupação e, melhor de tudo, cria a fumaça pra se observar, subindo em espirais e se dissolvendo infeliz antes de poder se juntar às nuvens lá em cima. Jogo a bituca no maço, porque não tem lixo nem cinzeiro à vista.

Grama. Árvores. Banco de concreto. Nada pra fazer. Ò deus dos passatempos, que faço eu agora? Sopro bolhinhas de sabão? Tiro a caneta da bolsa, cruzo a perna e começo a desenhar no tornozelo. Garatujas, como se estivesse ao telefone, que é quase nunca. Uma borboleta, um asterisco. Já que o latim está tão em voga, “memento mori”. Um lírio. Mais garatujas. Tiro o sapato e a meia. Uma estrelinha. Um pássaro. Outro asterisco. Uma ampulheta. Rabisco a sola também. È mais demorado, faz cócegas dolorosas. Ponho a meia e o sapato antes de me ocupar do outro pé. Já está quase escuro quando termino de amarrar o cadarço. Saio andando na minha nova pele. Sou um smurf indiano das canelas pra baixo.

Me perdi eficientemente, mas ando com toda a calma, ocasionalmente perguntando onde fica a avenida. Trem, então casa. Chave na porta, e ninguém pra cumprimentar, louvado seja o deus dos passatempos. Tirar a roupa do dia e me trancar no quarto. Na minha torre. Até que não foi difícil. Sobreviver. E até que me saí bem. Acho até que saí ganhando. Porque minhas meias, que eram brancas, agora são azuis.

***
possivelmente a coisa mais comprida que escrevi na vida. SE você chegou até aqui, parabéns, você é um vencedor :)