quarta-feira, dezembro 27, 2006

festa de fim de ano

- mãe, me faz uma com sardella?
E ela fez. Torradinha crocante, sardella apimentada. Uma delícia. Abri a boca e estendi a língua e ela pousou o acepipe gentilmente no lugar correto. Mais folga minha, impossível. Minha mãe é daquelas pessoas que fará tudo que você pedir. Imagina se destilassem o amor e pusessem numa garrafinha de rolha. Então. Você acaba de conhecer minha mãe. É claro que quando você abre a garrafa caem uns pedaços de rolha lá dentro. No caso dela é que ela se irrita e fica violenta quando não recebe as mesmas gentilezas. Ela acha que todo mundo é igual a ela e se não estão tratando ela como ela trata as pessoas, então algo deve estar muito errado. Acho que a maioria das pessoas tem essa impressão. Que no fundo, todo mundo é exatamente igual a elas. Deve ser por isso que a maior parte do tempo eu acho que todo mundo é insuportável.

De qualquer forma, mamãe passou um patê numa outra torradinha e saiu mastigando e andando, me deixando sozinha com o braço do sofá e duas tias que conversavam entre si. Enquanto isso, na cadeira ao lado, papai dizia pela décima vez consecutiva que era AQUELA música, agora sim era AQUELA música do Phil Collins que parecia uma reza, olha só ele ta falando com deus, com certeza é essa música, agora é ela. Parece uma reza. Pai, não é essa. Essa é de amor. Olha lá na legenda, So take a look at me now, oh there's just an empty space, tá vendo? Não é reza não, é música de fossa. Ele troca pra próxima. È essa. Tenho certeza que é essa. Olha só, parece uma reza. Perco a paciência e faço o enorme esforço de me fazer uma torrada com sardella, já que mamãe já fugiu da missa do Phil Collins há tempos. Sento no braço do sofá, deixando vago meu lugar, ainda com o baixo relevo da minha bunda, e sigo observando os que vêm e vão em busca de patês e migalhas de conversação. Do que é esse daqui? Não sei, não provei, mas acho que é de azeitona. É, tem cara. É. Vou provar. Boa.
Pausa incômoda para mastigação. E aí, é boa? Hum-hum. Vou até ali. Tá.


Mais uma torradinha. Incrível como o tédio dá fome. Pra ficar com as mãos ocupadas, pra distrair. Ou pra mexer a mandíbula e fingir pro seu corpo que você tem alguém pra conversar. Vou me afastar da mesinha de antepastos. É preciso. Sinto muito, sardella, mas é preciso. Você sabe que eu te amo, mas não há outro jeito. E além disso, mulher, tem outras coisas... ninguém come enquanto eu não me afastar. Sooou fiilho único... Ok, chega. Até a sardella já está me estranhando. Me levanto de impulso e não olho pra trás ( eu sei que ela vai estar me olhando. A sardella. A sardella jamais perdoa o abandono). Olha lá, é a prima Bete. Magrela e de olhos enormes, meio cabeçudota. Bete, o pirulito humano. Olá Bete-o-pirulito-humano ( a parte do pirulito eu suprimi do cumprimento). Oi, Vi, tudo bom? Ah, tudo e contigo? Meio cansada, sabe como é... Ah, sei. Final de ano. É. É. E o trabalho como vai? Ah, bem. E a faculdade? Legal. Gostei da tua blusa. Valeu, é nova. Bem legal, mesmo. Sorriso. Sorriso. Vou ver se precisam da minha ajuda na cozinha. Tá.

Umas dez pessoas tiveram a mesma idéia. Eles já tem esquentadores de arroz ( com amêndoas ou com uvas passas), destrinchadores de aves, misturadores de drinques e pessoas orquestrando o balé , agitando as mãos e dizendo Pega aquilo ali no forno? Cadê a travessa da farofa? Rúbia, vai fazendo o molho da salada, etc. Levo um tapa na mão por tentar surrupiar uma ameixa de dentro do côncavo de um pêssego que repousava tranqüilamente recostado num daqueles chesters todos espetados com cravos que mais parecem o hellraiser. Ok, ok. Não querem que eu leve alguma coisa pra algum lugar?

Saio com uma bela bandeja de salgadinhos quentes. Oi Bete-pirulito-humano, vai uma coxa-creme? Pega mais, pega mais. Isso, põe num copinho de plástico e leva pra casa ( suprimi tudo que veio depois de “Bete”). Posso pegar outro?, ela diz. Claro, como não?, eu digo. Levo os salgados para um tour. Vejam bem, esta é a sala de estar. Ali é a copa onde o tio zeca dançou a macarena sem camisa no natal de 1993. Mais pra frente, o lavabo, onde as pessoas de bem lavam suas mãos. Sem fotos por favor. Ah, é de queijo, Deco, pode pegar. Não é croquete, não, juro. A faculdade? Anda bem. Sim, a blusa é nova. Já disse que é de queijo. Sim, tenho certeza de que não é croquete. Viu? Fresco ( esse último adjetivo eu suprimi).
Na sala, Phil Collins faz sua 13ª oração. É uma verdadeira missa do galo.
Quer uma empada, pápi? É frango ou palmito? E eu sei lá? Putz, é essa! Olha agora, parece uma reza. Sei. Acho que é de palmito. Tó. Era a última. Corro pra cozinha e me livro da bandeja. Sento no querido braço da poltrona. Sardella, oh, querida sardella. Prometo não abandoná-la jamais. Ficarei contigo até o fim. Ao menos até a hora da ceia. Venha aqui sardella, venha aqui pertinho da minha torrada. Sardella... putz. Acho que toda essa música do Phil Collins tá me botando romântica.